A crise da mão de obra no mercado imobiliário
Incorporadoras, especialistas e sindicatos apontam para a existência do problema enquanto buscam uma solução
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Duas horas e meia para ir e duas horas e meia para voltar. A jornada de Ademar Rocha da sua casa, em Suzano (SP), até o canteiro de obras de um empreendimento de luxo na Vila Madalena, em São Paulo (SP), evidencia a rotina de contrastes, oportunidades e muito trabalho dos profissionais da construção civil. Em sua epopeia diária, o homem de 41 anos simboliza a resistência em um mercado imobiliário que vive uma crise de mão de obra.
De segunda a sábado, Ademar acorda às 4h30. São duas viagens de trem, uma de metrô e um ônibus até chegar ao bairro onde um imóvel de alto padrão custa, em média, R$ 3,92 milhões, segundo levantamento da imobiliária Bossa Nova Sotheby’s International Realty. Para encontrar o trabalho que hoje ajuda a sustentar os cinco filhos, o pedreiro já percorreu distâncias bem maiores.
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Oriundo de Cruz das Almas, município do Recôncavo Sul da Bahia, ele conta que sempre trabalhou com construção e se mudou para São Paulo quando para ocupar uma posição de ajudante. “Estudei só até a segunda série e não sei ler direito. Esta é uma área em que nós temos mais chances na vida”, analisa Ademar. Durante a trajetória, ele se especializou em fazer acabamentos nas obras.
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“Quando comecei não sabia nem jogar um chapisco na parede. Hoje, graças a ajuda de amigos, eu consigo construir uma casa inteira do zero”, orgulha-se. “Também nunca fico sem trabalho. Percebo que está faltando profissionais no setor”, aponta. De fato, incorporadoras e outras empresas do segmento chamam a atenção para a escassez de mão de obra e o envelhecimento dos canteiros.
Envelhecimento dos canteiros e baixa atratividade
Quase 30% das empresas mencionam a falta de mão de obra como um dos principais desafios enfrentados no setor, segundo a Sondagem da Construção realizada pelo FGV Ibre no início do ano.
Em 2016, a idade média dos trabalhadores da construção civil era 38 anos. Em 2024, o número saltou para 41 anos, de acordo com um estudo realizado pelo SindusCon-SP com dados de 1,1 milhão de trabalhadores em 22 estados brasileiros.
Para David Fratel, coordenador do Grupo de Trabalho de Recursos Humanos (GTRH) do Sinduscon-SP, a construção civil deixou de ser um mercado atraente para os mais jovens. “Eles estão acostumados a trabalhar de casa, seguir horários flexíveis e a não ter um chefe. A construção civil não é assim. Esta pessoa não vai se adaptar a uma construção civil arcaica. É necessário que a indústria a atraia”, argumenta.
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“O envelhecimento da mão de obra na construção civil é marcado pela ‘uberização’ e ‘ifoodização’ destes profissionais. Hoje, a meta de muitos deles é tirar a carteira de motorista para trabalhar com aplicativos”, indica Fratel. Esta falta de mão de obra se reflete no aumento dos custos. Segundo o Índice Nacional de Custo da Construção (INCC-FGV), a alta foi de 3,77% nos últimos 12 meses.
O mestre de obras Cleison dos Santos (34) vivencia este cenário na prática. Desde os 20 anos na construção civil, ele trabalhou como ajudante, carpinteiro e encarregado de carpinteiro antes de assumir um posto de coordenação. “Hoje em dia é mais difícil encontrar alguém. As pessoas sabem que é um serviço pesado, que será necessário trabalhar faça chuva ou faça sol. Elas preferem tentar ser youtubers”, brinca.
Natural de Parnaíba, segundo município mais populoso do Piauí, Cleison conta que foi um tio que o incentivou a entrar neste mercado depois de ver o sobrinho trabalhando sem folgas como auxiliar de limpeza e auxiliar de porteiro.
De lá para cá, ele já fez curso de hidráulica, aprendeu a instalar drywall e diz que ganha bem para seu nível educacional. “Tenho apenas o ensino fundamental completo e tem muita gente com curso superior que ganha menos”, garante.
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Preconceito e plano de carreira
Pai de duas crianças, Cleison garante que dará apoio caso os filhos resolvam seguir a profissão do pai. No entanto, admite que já sofreu preconceito. “Eu estava limpando a rua e passou um grupo de pessoas que conversavam entre si, brincando, e uma delas disse: ‘estuda porque, se não, seu futuro é aqui na obra”, detalha. “Não levo a mal, mas é um comportamento que precisa ser quebrado urgente”.
Os olhares tortos e piadas direcionadas aos serviços braçais que permeiam a cultura brasileira é outro fator que espanta os jovens deste mercado. “O profissional não quer chegar no metrô e dizer que é pedreiro. Os mais antigos não ligam para isto, mas os jovens se importam”, relata Antônio de Freitas, o Toninho, secretário geral e presidente em exercício do Sindicato de Trabalhadores da Construção Civil de São Paulo (Sintracon-SP).
O sindicalista afirma que muitos pais não querem que os filhos sigam na mesma profissão e, quando não há outra opção, os mais jovens demoram para se qualificar. “É um trabalho pesado, em que os trabalhadores precisam se levantar de madrugada para chegar cedo e os salários não acompanham esta demanda”, enumera Toninho.
Atualmente, o piso salarial da construção civil aprovado em convenção coletiva da Sintracon-SP é de R$ 2.066,01 por mês para profissionais não qualificados (serventes, contínuos, vigias, auxiliares de profissionais qualificados e demais trabalhadores cujas funções não demandem formação).
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Já para trabalhadores qualificados (pedreiro, armador, carpinteiro, pintor, gesseiro e demais profissionais qualificados não relacionados), o piso é de R$ 2.513,91 por mês. Quando se trata de trabalhadores qualificados em obras de montagem de instalações industriais: R$ 3.011,69 por mês / R$13,69 por hora – para 220 horas mensais.
Baixa qualificação e aumento da remuneração
O aumento da remuneração, no entanto, não é a única solução para melhorar a atratividade do setor na visão do mercado. “Estamos vivendo um boom da construção civil e a disputa por mão de obra é muito grande. Pela lei de oferta e demanda, o custo deste trabalho tende a aumentar”, observa Hélio Zylberstajn, Professor sênior da Faculdade de Economia da USP e Coordenador do Salariômetro da FIPE.
Só no mês de maio, a indústria da construção abriu 18.149 empregos no estado de São Paulo. No acumulado do ano, o setor gerou 159.203 novos empregos. Na visão de Zylberstajn, o modelo de trabalho também prejudica o preenchimento destas vagas.
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“A construção civil tem especificidades diferentes de outros setores. O contrato de trabalho é sempre temporário e dura até o final do prazo da obra. Este tipo de contratação impede que se crie uma relação mais longa entre empresa e trabalhador. Não há interesse de ambas as partes de investir nesta relação”, pontua o economista. “Se a relação fosse de longo prazo, a conexão poderia ser maior”.
Ele defende que a contratação tradicional não é o modelo ideal para o setor. “O trabalhador de uma obra vai trabalhar seis meses e receber aviso prévio, décimo terceiro etc. Isso tudo encarece a empresa”, calcula. Em contrapartida, Zylberstajn argumenta que os profissionais não possuem qualificação e este seria o principal sintoma do desgaste na relação empresa-colaborador.
David Frattel, do Sinduscon-SP, endossa esta perspectiva. Para ele, a baixa qualificação da mão de obra ajuda a diminuir a produtividade e estimula a alta rotatividade.
“Não se trata apenas dos salários, tem pedreiro que ganha mais de 14 mil reais por mês. Se o profissional for carpinteiro, armador e pedreiro ao mesmo tempo, ele consegue se manter na obra por mais tempo, não apenas durante alguns meses”, afirma.
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O eletricista José Raimundo dos Santos, o Branco, concorda sobre a importância da qualificação, mas discorda da visão sobre os altos salários. Natural de Duque Bacelar, município com pouco mais de 10 mil habitantes no Leste do Maranhão, ele começou a trabalhar como servente de pedreiro quando chegou em São Paulo. Logo, se identificou pela parte elétrica e fez um curso de qualificação.
“Hoje em dia, a gente precisa ter qualificação”, diz. Branco conta que entrou no setor da construção civil com 18 anos e que notou uma mudança no setor depois da pandemia, com a mão de obra se tornando mais escassa. Apesar disso, ele afirma não estar satisfeito com o salário que recebe, em torno de R$ 2.600 mensais.
Filho de sertanejos nordestinos e oriundo de uma família com 18 irmãos, Branco, hoje com 30 anos, retrata um tipo de profissional raro na atualidade: pertencente à geração Z e com qualificação. Pai de dois meninos, ele, no entanto, se esforça para ser o último na família vivenciando esta realidade. “Digo para meus filhos: ‘se você não estudar, será o principal prejudicado”, comenta.
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Cenários possíveis e soluções alcançáveis
Incorporadoras, especialistas e sindicatos concordam que o Brasil enfrenta uma crise de mão de obra na construção civil. Não à toa, o mercado atua em uma busca irrefreada por respostas para este cenário.
As soluções envolvem, principalmente, a industrialização dos processos e a qualificação dos profissionais. Este é o caso da construtora Trisul, que desenvolveu um programa de capacitação para seus colaboradores.
Criado em 2020, o projeto, que engloba 12 especializações e já formou mais de 100 profissionais, é uma resposta a uma transformação que vem acontecendo nos canteiros de obra da companhia. Stephany Carassoli, Gerente de Obras da Trisul, diz que a idade média dos colaboradores passou de 32 para 42 anos em cerca de oito anos, e que, por isso, decidiram tentar aumentar a atratividade.
“Precisamos de pessoas mais jovens e capacitadas. Por meio do programa, qualificamos ajudantes que conseguem aplicar esses ensinamentos na prática e podem se aperfeiçoar. Temos casos de pessoas que entraram como ajudantes e hoje são encarregados de obra”, orgulha-se Carassoli. A construtora, aliás, criou uma área específica para alcançar este objetivo dentro do organograma da companhia.
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Entre as estratégias adotadas para driblar a falta de mão de obra está a aposta na construção modularizada. Cada vez mais popular na construção civil, este é um processo em que a estrutura dos edifícios é construída longe dos canteiros de obra e depois são transportadas para o local em que o prédio será erguido. Na prática, a maior parte do projeto já sai pronta das fábricas e o pedreiro assume o papel de montador.
Para Hélio Zylberstajn, a ideia é boa, mas também apresenta riscos – principalmente em um meio onde a mão de obra está tão demandada. Ele argumenta que o processo de qualificação de um profissional não preparado significa um período de baixa produtividade e, quando ele está pronto, um concorrente pode oferecer o dobro do salário para contratá-lo.
“As empresas precisam se unir para compartilhar os custos e riscos na formação destes trabalhadores. Programas coletivos podem ajudar a diminuir os riscos para as empresas”, sugere o economista. “Hoje o mercado é cada um por si, em um ciclo ainda muito restrito”, critica Hélio. “A soma de processos padronizados com mão de obra qualificada vai melhorar a eficiência do setor”.
Enquanto os grandes atores planejam e desenvolvem mudanças para lidar com a falta de mão de obra na construção civil, ainda são muitos os que encontram no segmento uma oportunidade de vida melhor.
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É o caso de Lundoloki Andre, um angolano de 38 anos que trabalha com construção civil desde os 20 e imigrou para o Brasil em busca de melhores condições de vida. Ele conta que parte do salário que recebe como pedreiro é enviado para o sustento dos quatro filhos no país africano. Orgulha-se da profissão e diz que vai sentir orgulho se um de seus rebentos seguir seus passos.
“É bom ter uma profissão. A construção é grande e tudo o que consegui na minha vida foi por causa dela. É claro que não é como era antes, muita coisa mudou, mas eu acredito que ainda terei um bom futuro”, acredita.
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