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Desigualdade territorial: faces do racismo imobiliário no Brasil
Da formação dos bairros à dificuldade para alugar imóveis, cor da pele é fator relevante na hora de escolher onde morar e formalizar o contrato
Por: Breno Damascena . 13/10/2022 - 8 minutos de leitura
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Ao comprar ou alugar um imóvel, pessoas negras relatam dificuldades e apontam preconceitos motivados pela cor da pele. O racismo imobiliário se reflete em bairros monocromáticos, distritos desiguais e estatísticas que contrariam a tese de um Brasil miscigenado.
Para se ter uma ideia, apenas 5,8% dos habitantes de Moema são pretos ou pardos, ao passo que 60,1% dos moradores do Jardim Ângela se encaixam nessa população. Os dados são do Mapa da Desigualdade 2021, realizado pela Rede Nossa São Paulo a partir de informações populacionais do Censo.
A empresária e profissional de estatística Sauanne Bispo lembra que era criança na primeira vez que tentaram desencaixá-la de um espaço. A baiana estava visitando uma amiga em um bairro da classe alta de Salvador e as meninas resolveram brincar na área de lazer do condomínio. Ela conta que, além dos olhares incomodados, certa vez os porteiros a impediram de utilizar a piscina do prédio.
Aquela vez não foi a única em que se viu diante do desconforto com sua presença em ambientes que historicamente não se acostumaram com pessoas como ela. Entre tantas lembranças, ela recapitula uma experiência que viveu no final de 2020, quando começou a morar com sua filha em um condomínio de casas no distrito Vila Santa Clara, na zona leste de São Paulo.
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“Eu e minha filha éramos as únicas pessoas negras no condomínio. E, a princípio, fomos bem aceitas”, relata Sauanne. A jovem narra que as coisas mudaram quando começou a namorar. “Acho que quando meu namorado chegou, deu um tilt. Foi gente negra demais no ambiente”, reflete.
O momento crítico, em sua visão, foi quando ela descobriu que não estava no grupo de whatsapp dos moradores do condomínio, onde eram debatidos assuntos que iam da festa junina a um incidente em que Sauanne recebeu um bilhete anônimo que ela recebeu depois do namorado ter estacionado numa vaga destinada a visitantes. “Cheguei até a receber multa do proprietário por má conduta. Decidi sair de lá na mesma semana.”
Outra saga
Decidida a se mudar para um lugar maior e mais confortável, ela entrou em sites de aluguel de imóveis e fez uma planilha com aqueles que mais lhe interessavam. No entanto, o caminho não era tão simples assim. “Se eu deixasse essa tarefa para minhas amigas loiras, as coisas seriam mais fáceis”, brinca.
“Estava olhando um apartamento em um aplicativo e a proprietária me mandou um link para vídeos do imóvel, mas assim que migramos para o Whatsapp e ela viu minha foto, senti uma mudança”, relata. “Passou a me perguntar se eu tinha condições de pagar o valor que estávamos acertando, se eu tinha observado os números com atenção, entre outras coisas desse tipo.”
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Para conseguir, finalmente, encontrar um apartamento, Sauanne lembra que precisou “criar uma cena”. “Eu cheguei atrasada de propósito e abri o teto solar para que o corretor visse qual era o meu carro”, aponta. “No mesmo dia, eu já estava apertando a mão do proprietário e alugando um apartamento de mais de 200 m²”, relembra.
“Conheço mais de 35 países e já tive experiências distintas, mas aqui me sinto pior. Não tenho cara de russa ou norte-americana, eu sou brasileira”, comenta. “Aqui preciso ser sempre a pessoa mais arrumada do prédio. Nunca sou vista como alguém que frequenta os lugares que eu frequento, que dirige o carro que eu dirijo ou que mora onde eu moro.”
Direito à propriedade
O relato de Sauanne ilustra a complexidade de morar no País com a maior população negra fora da África. Até mesmo fazer paralelos com outras regiões do mundo, como os Estados Unidos, é uma tarefa complicada. Enquanto nos EUA houve uma segregação formal, que fez com que existissem ‘bairros de pessoas negras’, aqui no Brasil, o racismo imobiliário está ligado à condição socioeconômica.
É isso que explica Anna Lyvia Ribeiro, advogada com atuação em Direito Imobiliário e autora do livro Racismo Estrutural e aquisição da propriedade. “Atualmente, a gente consegue identificar facilmente quais são os bairros de negros – tradicionalmente periferias –, e quais são os bairros de brancos”, aponta. “Isso fica claro na queda do valor de mercado e em como a sociedade identifica aquele imóvel.”
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“No momento da procura, a gente identifica uma dificuldade maior de locação do imóvel para pessoas negras, principalmente em locais de alto padrão. Logo de cara, existe um questionamento da capacidade econômica daquela pessoa que não é comum com cidadãos brancos”, afirma. “O mesmo acontece na compra e venda, em que negros são empurrados para regiões mais distantes.”
Contexto histórico do racismo imobiliário
A cor da pele pode determinar o significado de “pertencimento” em algumas regiões da cidade de São Paulo. Nas ruas do centro, pretos. Nas mansões dos Jardins, brancos. O racismo imobiliário é uma face do racismo estrutural. E não é de hoje que ele se manifesta. É um fenômeno que existe desde a época da escravidão, quando Casa Grande e Senzala já segregavam os espaços a que cada um deveria pertencer.
“Quando a lei de terras foi aprovada, em 1850, ela cria a ideia de quem pode ser proprietário de terrenos no Brasil: os grandes senhores, brancos. Mulheres e negros eram preteridos nessa divisão”, elucida Paula Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do LabCidade. “Os pretos já nasciam sem teto e pagavam o aluguel trabalhando na produção, com sua força de trabalho. Assim, eles vivem eternamente em dívida.”
A professora aponta ainda que, a partir daquele momento, as cidades reinventaram formas de dificultar o acesso à moradia por pessoas negras, especialmente pela questão da renda. Isso é visto, por exemplo, na criação de cômodos exclusivos para os trabalhadores domésticos e na distribuição desigual de cores que existe nos bairros da cidade de São Paulo.
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Bairros de pretos e gentrificação
“Isso se renova de uma forma menos óbvia: o racismo estrutural. No banco não tem nada formalizando que não se pode conceder financiamento para negros. A nossa política de racialidade imobiliária é controlada por fluxo e comprovação de renda”, explica Paula. “Isso faz com que os territórios se tornem mais brancos a partir das transformações imobiliárias. Cada novo lançamento acelera a tendência”, aponta.
Distrito | Proporção | Distrito | Proporção | Distrito | Proporção | ||
Moema | 5,8 | Penha | 23,9 | Parque do Carmo | 40,7 | ||
Alto de Pinheiros | 8,1 | Mandaqui | 24,3 | Vila Andrade | 41,4 | ||
Itaim Bibi | 8,3 | São Lucas | 24,4 | Sapopemba | 41,7 | ||
Jardim Paulista | 8,5 | Cursino | 24,6 | Ermelino Matarazzo | 43,0 | ||
Vila Mariana | 8,7 | Belém | 24,7 | Cachoeirinha | 43,3 | ||
Perdizes | 9,4 | Vila Matilde | 25,4 | São Miguel | 44,1 | ||
Santo Amaro | 10,3 | Jaguara | 25,8 | Cidade Dutra | 45,5 | ||
Consolação | 10,6 | Aricanduva | 27,5 | Itaquera | 45,7 | ||
Lapa | 10,7 | Vila Sônia | 27,9 | Raposo Tavares | 46,5 | ||
Saúde | 10,9 | Casa Verde | 29,1 | Jaraguá | 47,3 | ||
Tatuapé | 11,1 | Freguesia do Ó | 29,9 | José Bonifácio | 47,6 | ||
Pinheiros | 11,1 | República | 30,2 | São Rafael | 47,9 | ||
Campo Belo | 12,2 | Pirituba | 31,3 | Campo Limpo | 47,9 | ||
Moóca | 12,3 | Bom Retiro | 31,4 | Marsilac | 48,6 | ||
Água Rasa | 13,8 | Sacomã | 32,0 | Perus | 48,8 | ||
Vila Leopoldina | 14,4 | São Domingos | 32,0 | Vila Jacuí | 49,0 | ||
Santana | 14,5 | Rio Pequeno | 32,4 | Cidade Ademar | 50,0 | ||
Barra Funda | 15,7 | Limão | 32,8 | Anhangüera | 50,3 | ||
Butantã | 16,1 | Brás | 33,5 | Brasilândia | 50,6 | ||
Carrão | 17,3 | Vila Medeiros | 34,0 | Iguatemi | 50,9 | ||
Liberdade | 17,9 | Vila Mariana | 34,0 | Vila Curuçá | 51,2 | ||
Vila Prudente | 19,0 | Jabaquara | 34,4 | Jardim São Luís | 51,3 | ||
Tucuruvi | 19,3 | Jaguaré | 34,4 | Guaianases | 51,5 | ||
Morumbi | 19,5 | Pari | 34,7 | Pedreira | 52,4 | ||
Santa Cecília | 19,7 | Ponte Rasa | 35,2 | Capão Redondo | 53,9 | ||
Vila Formosa | 20,4 | Jaçanã | 35,8 | Jardim Helena | 53,9 | ||
Cambuci | 21,0 | Artur Alvim | 37,1 | Itaim Paulista | 54,8 | ||
Socorro | 21,5 | São Mateus | 37,5 | Cidade Tiradentes | 56,1 | ||
Bela Vista | 21,6 | Cangaíba | 38,2 | Lajeado | 56,2 | ||
Ipiranga | 22,0 | Sé | 38,3 | Parelheiros | 56,6 | ||
Vila Guilherme | 22,0 | Cidade Líder | 38,8 | Grajaú | 56,8 | ||
Campo Grande | 22,3 | Tremembé | 39,7 | Jardim Ângela | 60,1 |
Paula exemplifica esse conceito usando o centro de São Paulo como referência. “É tradicionalmente um território popular negro. Mas os movimentos imobiliários estão promovendo mudanças significativas em termos de raça e renda”, explica. “O Brooklyn, em Nova York, era um bairro povoado por negros e pela população pobre imigrante. Hoje, [os moradores] são brancos norte-americanos.”
Caminhos contra o racismo imobiliário
Não faz muito tempo que se popularizou nas redes sociais os relatos feitos por pessoas negras que enfrentavam dificuldades ao tentar alugar um imóvel. E, apesar do racismo ser um crime no Brasil, a advogada Anna Lyvia Ribeiro comenta que é bastante difícil comprovar e reunir provas para um processo jurídico em busca de penalização na esfera administrativa.
No próprio contexto de São Paulo, existe a Lei Estadual 14.187, onde no artigo 2, inciso 5º, está explicitado que “recusar, retardar, impedir ou onerar a locação, compra, aquisição, arrendamento ou empréstimo de bens móveis ou imóveis” é considerado um ato discriminatório racial com passividade de punição. “O caminho para que isso mude a realidade é seguir denunciando, reunindo o máximo de provas possíveis”, afirma Anna.
A advogada acredita que o caminho para a transformação passa pela compreensão do mercado imobiliário de que a estrutura racial do País afeta a vida das pessoas e que é preciso combater a discriminação em todas as esferas. “É preciso que o setor reavalie como atende às pessoas pretas”, comenta. “O ideal é que as pessoas negras não visitem os bairros mais ricos apenas para trabalhar e servir.”