A legislação brasileira classifica como contravenção
penal a perturbação do sossego alheio com gritaria ou algazarra; exercício
de profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abuso
de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocar ou não procurar impedir
barulho produzido por animal de que tem a guarda. A pena pode variar entre prisão
simples, de quinze dias a três meses de retenção, ou multa, que pode chegar à
casa das centenas de milhares de reais. A forma de observar o cumprimento da
constituição é ligar para a polícia e pedir intervenção. Se o problema for
persistente, é necessário realizar o Boletim de Ocorrência e mover uma ação
judicial.
Danos à saúde física
e mental
Caroline Burgos Martins da Costa, 23 anos, mora com o
marido, de 27, um gato e a cachorrinha do casal em um sobrado na Vila Nova Esperia,
Jundiaí. Ela conta que quando a vizinha tinha apenas o primeiro filho, hoje com
7 anos, a situação parecia tranquila. Mas com a chegada da bebezinha as coisas
ficaram mais complicadas. “A filha dela chora muito, mas tem os
gritos da minha vizinha também. Ela grita o tempo todo com as crianças. O
menino, quando se junta com o amiguinho, fica batendo garrafa pet na parede de
noite. Meu marido e eu não conseguimos dormir.” Ao tentar uma conversa
sobre os incômodos, não foram bem recebidos e não perceberam qualquer cuidado
da família com relação ao barulho. “É uma situação bem chata mesmo. Vamos
ver este ano o quanto o aluguel vai subir e, dependendo do valor, vale a pena
trocar nossa casa por um apartamento.”
Os efeitos negativos no
organismo decorrentes da exposição ao barulho constante podem variar em cada
indivíduo, mas é certo que a saúde é afetada no médio e longo prazo. Alguns
sintomas podem ser observados de maneira imediata, como dores de cabeça. Mas
outros problemas, como a perda auditiva precoce, avançam muitas vezes sem serem
notados. Além disso, o desconforto acústico pode causar transtornos
como distúrbios do sono, estresse, alteração do
humor, irritabilidade, aumento da frequência cardíaca, surdez, zumbido
no ouvido, distúrbios digestivos, falta de concentração, pressão alta, fadiga, alergias…
a lista é longa.
Carlos é testemunha do desgaste físico e psicológico não
apenas dos barulhos, mas também dos conflitos. “O resultado dessa longa
batalha com vizinhos deixa um rastro de questões psicológicas. O stress, a
ansiedade, o pânico deixa gatilhos escondidos que você, mesmo estando bem,
passa mal do nada.” Marcel Fulvio Padula Lamas, médico com formação
em psiquiatria, explica que as doenças psiquiátricas são causadas por múltiplos
fatores. Entre os principais estão os grandes estresses agudos e imediatos
(como assaltos, perda de familiares ou de emprego), estresses crônicos de
intensidade leve e moderada (trabalho estressante, bullying e também os barulhos frequentes causados por vizinhos)
e fatores genéticos, como familiares que já possuam desequilíbrio da saúde
mental.
“Existem, é claro, fatores como o uso de substâncias e outras motivações. Mas a questão é que, quando a pessoa já tem o estresse do dia a dia, ela chega em casa buscando o aconchego para relaxar, ver um filme, focar em outras coisas. O problema da criança gritando, desse estímulo constante, é que acaba sendo algo irritativo, que gera estresse. No momento em que a pessoa deveria estar se tranquilizando, dormindo de forma adequada, ela não consegue”, reflete o médico.
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Carlos e seus familiares enfrentaram problemas que, com o
tempo, acabaram se tornando crônicos. “No meu caso, tive que levar gente
da família às pressas ao menos três vezes em pronto socorro de madrugada.
Exames completos, complexos e periódicos passaram a ser realizados a partir de
então e você não acha nada, absolutamente nada, porque é psicológico. Todos
somos ansiosos, mas ninguém vai entender a que nível me refiro se não viver
isso. A vida muda, o vizinho sem noção vai embora, o problema fica. Estamos com
traumas. Vencemos todas as batalhas, todas, sem exceção. Recusei-me a mudar por
conta de vizinhos, mas hoje acredito que o melhor caminho seria ter vendido o
imóvel.”
Poluição sonora
A Organização
Mundial da Saúde considera a poluição sonora um problema de saúde pública
desde 2011. Ao lado da poluição do ar e das águas, o excesso sonoro foi
considerado como uma das três prioridades ecológicas. A Agenda 21
Brasileira, que tem entre suas prioridades o fomento
às cidades sustentáveis, propõe “implementar campanhas de
esclarecimento à população sobre a produção de ruídos, divulgando o valor médio
de decibéis toleráveis relativos ao tipo de área e período do
dia”. A poluição sonora já é entendida como um dos maiores
problemas ambientais dos grandes centros urbanos e é caracterizada quando
o som excessivo altera a condição tolerável de audição e o funcionamento de
organismos vivos ao redor.
Embora não se acumule no meio ambiente como outros tipos
de poluição, ela realmente causa danos não apenas aos seres humanos, mas
também aos animais. “A gente vive numa sociedade que cultua o barulho.
Todas as atividades de lazer estão relacionadas à intensidade sonora elevada.
Isso em qualquer faixa etária. Desde criança até adulto. As academias de
ginástica, corridas de Fórmula 1, corridas de moto, as baladas… todas têm
intensidade sonora bem elevada. Porque isso dá prazer”, reflete
Andréa. A médica alerta que é preciso preservar as crianças não só dos
barulhos urbanos contínuos, mas também do ruído causado pelas atividades das próprias
crianças e do que propomos a elas como brincadeira.
“Brinquedinhos de vinil que a gente dá para recém-nascidos têm intensidade sonora superior a 90dB. Os carrinhos com motor, caminhão de bombeiro que tem sirene, ambulância, também são ruidosos. E essas intensidades sonoras variam de 80 até 110dB.” Na minha casa, carrinhos não costumam ser um problema. Eu sou o tipo de mamãe que compra brinquedos pensando no meu próprio gosto para a hora de brincar, afinal, minha filhinha solicita companhia com frequência. Brinquedos de madeira, quebra-cabeça, lousa para desenhos grandes e cartas de mímica estão entre os meus preferidos. Meus esforços, no entanto, não impediram que chegássemos à era do Luccas Neto, com sua atuação teatral que envolve aventuras com muitos gritos!
Nada acolhedores
Rosemeire de Fátima C. G. de Almeida, de 51 anos, é mãe do
Mateus, de 17. Agora a situação com os vizinhos está apaziguada, mas Rose, como
é conhecida no prédio, e Mateus já foram tema de diversas assembleias condominiais.
As reclamações são várias, vindas de diversas unidades, sempre a respeito do
barulho, da bola na parede, das palmas, de coisas atiradas pela janela e dos
gritos do menino. “Às vezes eu fico até com dó dos moradores, sabia? Mas é uma
coisa que eu não tenho muito como controlar.” Além dele, Rose tem outros cinco
filhos, dois deles morando fora. As mais novas são as duas gêmeas, Alice e
Rebeca, com 11 anos.
Os problemas ocorrem principalmente na área privativa externa de onde mora a família. Como acontece em alguns apartamentos no térreo ou primeiro andar, existe um pequeno espaço, como um quintal, nos fundos do prédio, incluído na estrutura de uma unidade. Neste caso, trata-se de uma área de 28m² adicionais aos 70m² da área interna. “Uma coisa é as meninas. Você não as vê lá fora, eu não deixo. Agora, o Mateus eu não tenho como proibir, porque é o único lugar que ele tem do apartamento. Pra você ter uma ideia, ele faz a refeição dele lá fora, não senta com a gente na mesa. Come lá de pé. Ele é autista. Eu troquei o remédio, então ele ficou calmo alguns dias, mas agora tá a mesma coisa. Fica gritando lá fora, gritando. Acho que ele quer se expressar e não sabe como. De vez em quando eu até pego a dona do segundo andar, dona Cacilda, dando uma dura nele lá de cima, né? ‘Mateus, fica quieto! Para de fazer barulho!’”
Apesar das dificuldades, Rose diz que ela e o marido,
Nivaldo, procuram ser compreensivos e atender de maneira educada quem os
procura com reclamações. Mantêm a rotina de colocar o Mateus para dormir cedo e
a escola especial, que ele frequenta. Apesar disso, ele não fala, não lê, não
escreve, não distingue cores. Eventualmente, acorda antes do amanhecer.
Desenhos na TV e bolacha recheada seguram o menino no sofá até o horário
comercial. Mais do que isso, só se estiver dopado. “Até falei para o médico: eu
não dou mais o comprimido assim inteiro, eu dou metade, porque senão meu filho
passa a maior parte do tempo vegetando.”
Novamente, os limites entre a tolerância e o intolerável parecem borrados: a preocupação de quem precisa dizer o tempo todo “não grite”, “não corra”, “não pule”, “não jogue”, “não suba”, “não derrube” e a vida possível para as crianças que, naturalmente, têm energia. Todo o adulto foi criança um dia e também sentiu a necessidade da expansão. Cristina, mãe da bebê a quem os vizinhos chamam de “chorona”, conta que vive tão tensa que, ao primeiro resmungo na madrugada, já se coloca em pé ao lado do berço, acolhendo qualquer iniciativa de choro. “É engraçado isso, né? Por exemplo, agora que não é horário de verão, 5h da manhã o sol já está raiando e minha vizinha coloca as roupas pra lavar. Ela tem uma máquina absurdamente barulhenta e tá tudo bem. Minha outra vizinha que fala também que minha bebê é chorona, acorda por volta desse horário, cantando alto e fazendo um atropelo dentro de casa e também tá tudo bem. Vizinhos da casa de cima brigam e os gritos deles chegam a assustar minha bebê e tudo bem. O problema são os barulhos das crianças, que realmente têm essa necessidade. Até na escola, onde teoricamente é um espaço para crianças, elas não podem ser barulhentas. Os espaços em geral não são nada acolhedores com as crianças.”
Inimigo invisível
“Tudo vai depender do conforto do ambiente acústico. Se
estão brincando numa salinha fechada, o desconforto é maior, porque a
reverberação do som fica dentro daquele ambiente.” Andrea tocou no tema central:
o quanto nossas paredes foram pensadas para o volume de nossa vida doméstica?
Como nossos lares podem proteger nossas intimidades ruidosas? As nossas salas
podem promover nosso convívio social sem interferir no direito do vizinho à
tranquilidade?
Talvez não. Mas existem metodologias de construção que
garantem isolamento e conforto acústico, mesmo que a edificação já esteja
pronta. Gilberto Fuchs me explica que é possível diminuir o tempo de
reverberação ainda que o ambiente esteja em uso, desde que seja feita uma
avaliação profissional e que se esteja disposto a encarar uma reforma, que pode
não ser básica. “Quando é o ruído de uma parede pra outra, você tem que
aumentar o isolamento, que geralmente está associado à massa, ao peso. Se você
faz uma parede muito levinha, com um gessinho casquinha, ele é transparente em
termos sonoros.” Aparentemente, os materiais leves, como as divisórias de gesso
acartonado, têm feito sucesso na construção civil, por serem fáceis de lidar e
muito rápidas de colocar no lugar.
“É um excelente material, desde que bem aplicado. Mas precisa
ter uma espessura mínima de gesso de cada um dos lados, com preenchimento de
materiais para absorção. A nossa alvenaria tradicional é muito boa, só que é um
método muito mais caro do que os modernos. Estão fugindo da alvenaria porque é
pesada, sobrecarrega a estrutura do prédio.” O profissional afirma ainda que a
engenharia civil brasileira é referência no desenvolvimento de técnicas de construção
com concreto armado, estruturas extremamente eficientes, avaliadas entre as
melhores do mundo. “Uma laje fina pode funcionar muito bem, é firme, você
coloca peso, uma maravilha, não cai. Mas, opa! É um tamborim. Se alguém caminha
em cima, você ouve tudo embaixo.”
Mas a questão do barulho não se restringe ao som em si. A
informação que um barulho nos traz aos ouvidos pode, eventualmente, ser mais
perturbadora do que o volume. Ao ouvir o choro de uma criança, a mensagem pode
ser entendida como “tem uma criança que precisa de ajuda!” ou “ah, meu Deus!
Alguém está maltratando uma criança!” ou ainda “coitada dessa criança… não
sabem cuidar dela…”. A interpretação é livre e o julgamento pode ser
infinito, ainda que a real motivação do escândalo seja uma cólica, gripe, um
machucado no dedinho ou simplesmente manha.
“Psicoacústico, que chama. Não é só a questão física, do
espécime do ruído, mas do que ele traz de informação para quem está escutando
isso. Se você está na sua casa, alguém liga um forró e você não gosta, vai
ficar injuriado. Se gostar de forró, vai fazer um joinha pro vizinho. Mas hoje
em dia, pesquisadores do mundo inteiro já estão estudando paisagem acústica,
como criar espaços na cidade com conforto acústico, qual ruído é benéfico às
pessoas e como se deve tratar a questão da suscetibilidade do ser humano aos
diferentes tipos de ruído. Aqui no Brasil ainda estamos brigando com o bebê.
Estamos na idade das cavernas em termos de acústica.”
24/02/2020
Aguardo um reportagem sobre latidos incessantes do canil em que se transformou a cidade.
26/02/2020
Artigo foi útil sim.
Continuo acreditando que a melhor solução para um bom comportamento das crianças é uma boa educação e exemplo dos pais.
27/02/2020
Sim, tudo isso é parte da “urbanidade” e das transformações que a sociedade em todos os níveis passam. O grande e maior problema é, na verdade, a incompetência dos poderes públicos, em fiscalizar quem produz ruídos. Desde veículos de passeio, propagandas, que vendem produtos nas ruas. Buzinas de entregadores, e por ai vai. Junte-se a isso, as caixas de som, com anunciadores, nas portas de estabelecimentos comerciais. Igrejas. Televisores em bares e restaurantes etc. Ah, os telefones em viva voz, em ambientes púbicos, transportes, principalmente. É, realmente tem sido difícil vivem em sociedade.