Construção civil na pandemia: 25% de afastamento e 60 dias sem óbitos
No rol das atividades essenciais, setor segue cumprindo os protocolos de segurança sanitária com bons resultados
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Desde 22 de março, quando o Estado de São Paulo decretou status de quarentena como medida de proteção diante da pandemia do novo coronavírus, poucas atividades profissionais foram incluídas no rol de atividades essenciais. É caso dos profissionais da saúde, dos agentes de segurança, dos trabalhadores do serviço de limpeza pública e também da construção civil.
O contingente do setor, de acordo com Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil de São Paulo, é de 680 mil, entre diretos e indiretos, apenas no Estado. Em todo País, a estimativa é de pouco mais de 2 milhões e muitos desses trabalhadores seguiram a rotina no canteiro de obras.
Empresas e funcionários relatam a adoção de novas diretrizes de segurança e saúde, como medição de temperatura ao chegar à obra, orientação para distanciamento de um metro dos colegas, galões de álcool em gel disponíveis e a distribuição gratuita de máscaras de pano. Mesmo assim, de acordo com relatos colhidos pela reportagem, é comum ver colegas com o rosto desprotegido, sobretudo nas pausas.
As medidas adotadas são, inclusive, orientações estabelecidas no documento Diretrizes para o combate e resposta à Covid-19, um protocolo criado a muitas mãos que determina o que as empresas devem oferecer a seus funcionários durante a pandemia. Assinam este documento a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), o Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP), o Sindicato da Construção Civil de São Paulo (SindusCon-SP) e o Serviço Social da Construção (Seconci-SP), com o apoio do Sintracon.
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Majoritariamente, as empresas têm seguido as regras, mas a escala é incerta. Em sua mais recente pesquisa semanal, que consulta 36 empresas do setor, a Abrainc informa que 100% delas cumprem o protocolo – exceto o item sobre transporte especial para funcionários, com o qual 22% das instituições averiguadas estão em dia. Já a pesquisa semanal do Seconci com 35 empresas, aponta que 94% delas adotam tais medidas. E ainda mais distante destes números está a estimativa feita pelo presidente do Sintracon, Antônio Ramalho: seriam apenas 80% das obras em conformidade com o protocolo.
Haruo Ishikawa, presidente do Seconci-SP, tenta explicar a diferença nos números. “As pesquisas consultam as grandes empresas, que via de regra são rígidas com a segurança. O problema são as obras informais, terceirizadas, que representam mais de 50% do setor. Há pouca fiscalização nestes casos”, afirma. A responsabilidade pelas obras terceirizadas, contudo, é também da empresa contratante. Ou seja, há um amplo universo de trabalhadores do setor não contemplados nos índices de testagem.
Situação nos canteiros de obras
Os dados sobre testagem são ainda mais desencontrados. As empresas que estão seguindo o protocolo devem testar qualquer funcionário com sintomas e afastá-lo imediatamente do trabalho. O problema: de acordo com a Organização Mundial da Saúde, apenas 20% dos contaminados pelo vírus apresentam sintomas; mas todos os infectados, ainda que assintomáticos, são vetores de transmissão.
As pesquisas semanais da Abrainc e do Seconci, respectivamente, compreendem um universo de aproximadamente 60 mil e 28 mil trabalhadores e publicam dados atualizados enviados pelas empresas:
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- A da Abrainc informa que apenas 0,5% estão afastados com suspeita de Covid-19 e mais 0,5% têm a confirmação da doença, sendo apenas três pessoas internadas. Das 781 obras, 27 estão paradas;
- A do Seconci informa 2,2% de trabalhadores afastados com suspeita e 1,2% já confirmados com Covid-19. Das 425 obras, somente cinco estão paradas.
O Sintracon, por sua vez, com dados consolidados até junho, informa que recebeu o retorno de 15 mil testes: destes, 28% já tiveram contato com o vírus e, dentro do universo dos infectados, 60% estava assintomático.
“Algumas empresas não querem gastar com testagem, então só testam quem está com sintomas. Nas obras que as empresas testaram todos os funcionários já vimos canteiros com 70% de imunidade e até com 100% de testes positivos”, revela Ramalho, do Sintracon.
Como amostragem, o levantamento realizado pelo Seconci a partir dos testes realizados pela própria entidade é o mais transparente e representativo. Até a última parcial, encerrada em 2 de julho, foram realizados 6.396 testes sorológicos rápidos. Este é o modelo de testagem padrão no setor, mas muito criticado pelos especialistas, devido sua baixa eficácia, e ponderado até pela Anvisa: “O diagnóstico de Covid-19 não deve ser feito por uma avaliação isolada dos resultados dos testes rápidos. No estágio inicial da infecção, falsos negativos são esperados, em razão da ausência ou de baixos níveis dos anticorpos e dos antígenos de Sars-CoV-2 na amostra”, diz em nota.
Do total de testes aplicados pelo Seconci, aproximadamente 75% deu negativo para o coronavírus. Isso significa que 25% dos trabalhadores testados foram, em algum momento, afastados: 8,5% deles já estavam imunes e puderam retornar seguindo as diretrizes do protocolo, 15,5% testaram positivo para Sars-CoV-2 e pouco mais de 1% teve resultado inconclusivo e precisa refazer o exame.
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A soma de óbitos no setor também não está clara. A Abrainc divulga oito óbitos. A Sintracon tem um número muito mais elevado: são pelo menos 57 profissionais do setor que morreram em decorrência da Covid-19. As duas entidades, contudo, convergem em uma boa notícia: já são mais de 60 dias sem mortes na construção civil.
Riscos reais da Covid-19
Levantamento realizado pelo instituto Coppe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com diversas atividades profissionais classifica o risco de contaminação dos pedreiros com 57 pontos, numa escala de 0 a 100 – pontuação próxima a de técnico em administração, com 56 pontos.
Para o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), o risco aos profissionais do setor é agravado pelo perfil socioeconômico dos trabalhadores. A entidade informa que o salário médio dos empregados da construção civil é de 2,5 salários mínimos (de acordo com a UFRJ, a média apenas entre os pedreiros está abaixo de R$ 1.800) e que 60% do contingente é de homens não-brancos.
Estudo da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) conclui que, na capital, a população negra tem 2,5 mais chances de contrair o vírus: na amostragem coletada, a testagem de anticorpos deu positivo para 7,9% dos brancos e 19,7% para os negros analisados.
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“Por mais que haja esforço no sentido de pensar medidas para diminuir o contágio entre os operários, é praticamente impossível evitar os graves riscos de contaminação aos quais os trabalhadores são submetidos nos longos caminhos nos transportes públicos para chegar ao seu local de trabalho”, aponta o IAB, em nota.
É a mesma preocupação relatada pelo pedreiro ouvido pela reportagem e pelo presidente da Sintracon. “No trabalho, ele está mais seguro que na comunidade dele e no trajeto. Tem muito contato nos ônibus, que agora estão cada vez mais lotados”, preocupa-se Ramalho.
O protocolo de segurança prevê mudanças nos turnos das obras, com a finalidade de evitar que os empregados se locomovam durante o horário de pico. Segundo o Seconci, muitas empresas já adotam esta medida.
Por que os trabalhadores quase entraram em greve?
O Sintracon chegou a anunciar uma greve geral para o setor no dia 16 de junho, mas recuou. Embora o sindicato já tenha autuado mais de 2 mil canteiros de obras denunciados pelos funcionários por não seguirem as recomendações do protocolo, a motivação foi outra: a falta de entendimento sobre a convenção coletiva.
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Ramalho explica que a pauta da assembleia do setor foi entregue aos sindicatos patronais em março e tem como data base 1° maio. Diante da pandemia, o Sintracon aceitou adiar a data base, mas quando foi notificada da suspensão das negociações, ameaçou a greve.
Houve acerto entre as partes e a greve foi cancelada. Mas algumas reclamações apresentadas pelo sindicato seguem sem novidades. É o caso do pedido por testes em 100% dos trabalhadores do setor e de uma nova política para os empregados do grupo de risco: aqueles acima de 60 anos e com comorbidades.
“Eles estão sendo demitidos de forma cruel”, denuncia o presidente do sindicato. “Nos primeiros 90 dias, empresas usaram férias, banco de horas e até adiantamento. Aí, na rescisão, alguns nem estão sendo pagos. Os velhinhos estão desesperados com medo de não conseguir mais emprego.”
O STF decidiu pela suspensão do Artigo 29 da Medida Provisória 927/2020, o que permite a caracterização da Covid-19 como doença ocupacional, mas em contextos específicos. “Sem esse entendimento [de doença ocupacional], caso sejam contaminados em ambiente de trabalho os operários ficam sem meios de acessar os direitos previdenciários e trabalhistas”, aponta o IAB.
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De acordo com as regras estabelecidas, o trabalhador com sintomas pode ficar afastado por 14 dias pagos pela empresa; além desses dias, o pagamento é transferido ao INSS. Na volta, em tese, ele não pode ser demitido caso o entendimento da Covid-19 como doença de trabalho seja confirmado. “Evitar a demissão é a preocupação número um das empresas”, garante Ishikawa, do Seconci.
Paralisação e impacto econômico
Pesquisa realizada pela consultoria KMPG concluiu que as incorporadoras têm solidez financeira para atravessar em segurança a crise econômica provocada pela pandemia.
Para 67% das empresas participantes do estudo, não houve qualquer risco de liquidez. Para 57%, não houve impactos relevantes com distratos. E para 76% não houve, e nem se estima para o futuro, alguma quebra de indicadores financeiros. “Por enquanto, o fluxo de caixa está mantido”, disse Eduardo Tomazelli, membro da área de Financial Services da KPMG, em webnar promovido pelo Secovi-SP.
Diante deste quadro, em nota, o IAB questiona se de fato a manutenção das obras não-essenciais é necessária. “O que justificou a continuidade de toda outra gama enorme de tipos de construções em curso, como shoppings centers, edifícios residenciais e corporativos de luxo e obras públicas não relacionadas ao combate ao Covid? E qual o impacto em termos da saúde coletiva da não paralisação dos milhares de trabalhadores da construção civil?”
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Os trabalhadores, como o pedreiro que conversou com a reportagem, parecem resignados com a continuidade das atividades. E os sindicatos mantêm a defesa da ininterrupção das obras como forma de manter a economia em movimento e garantir empregos – desde que em segurança.
“Houve aumento de custo, realmente. Em média, temos efetivo de 90% trabalhando e 10% afastados, pagos pela empresa, além de novas obrigações de segurança e equipamentos de proteção individuais. Está claro que o PIB da construção civil vai cair bastante”, analisa Ishikawa, do Seconci. “Mas, no meio da pandemia, difícil falar em números. O mais importante é garantir a saúde e a vida”, conclui.
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