Cidades Inteligentes

Saiba como a arquitetura hostil cria barreiras físicas e sociais na sociedade

Intervenções urbanas visam inibir a presença de pessoas em situação de rua

Por:Breno Damascena 04/01/2023 4 minutos de leitura
arquitetura-hostil
Especialistas apontam arquitetura hostil como resultado da aporofobia, a aversão a pessoas pobres/ Crédito: Getty Images

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Em dezembro foi promulgada a Lei 14.489, de 2022, um projeto que se propõe a alterar o Estatuto da Cidade. A Lei Júlio Lancellotti, como foi batizada, proíbe construções feitas em espaços públicos – sejam elas estruturas, equipamentos ou materiais – com o objetivo de afastar as pessoas em situação de rua. A intenção da proposta é banir aquilo que ficou conhecido como “arquitetura hostil”.

A norma foi aprovada em sessão do Congresso que derrubou o veto do presidente da República, Jair Bolsonaro, ao projeto. De autoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES) e relatoria do senador Paulo Paim (PT-RS), a lei recebeu esse nome em homenagem a Júlio Lancelotti, padre que realiza trabalhos sociais na cidade de São Paulo e se tornou referência nacional no combate a esse tipo de construção. 

Em mais de uma ocasião, o Padre Júlio Lancellotti usou uma marreta para remover pedras pontiagudas instaladas em espaços públicos/ Crédito: Tiago Queiroz/ Estadão Conteúdo

O que é arquitetura hostil? 

Arquitetura hostil é o termo utilizado para demarcar dispositivos utilizados nos espaços urbanos para inibir e dificultar o acesso de pessoas, principalmente aquelas em situação de rua, a determinados locais. “É uma arquitetura de exclusão”, resume Paula Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do LabCidade.

“Consiste na discriminação de certos corpos, geralmente pobres, negros ou imigrantes, de frequentar alguns espaços públicos”, adiciona. Essa repulsa se traduz em elementos físicos e visuais que se tornaram comuns nas cidades brasileiras, como pedras cimentadas embaixo de viadutos, parafusos instalados na calçada de prédios e bancos com divisórias em paradas de ônibus.

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Crédito: Tarcísio Gontijo Cunha

A expressão foi utilizada pela primeira vez em uma reportagem publicada em 2014 no The Guardian que abordou como as pontas de ferro anti-desabrigados construídas em Londres simbolizam esse fenômeno de repulsa a alguns indivíduos. “O pobre é visto como uma pessoa que não tem nada a contribuir com a sociedade. E se você não tiver valor, você não é cidadão”, comenta o arquiteto e urbanista Tarcísio Gontijo Cunha. 

Doutor em Arquitetura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Tarcísio alega que a arquitetura hostil é um elemento da aporofobia, termo cunhado pela escritora e filósofa Adela Cortina para designar a aversão aos pobres. “Sentar em um gramado embaixo de uma árvore na praça vai provocar sentimentos contrastantes de acordo com sua cor e condição social”, exemplifica. 

Além de modificações físicas

O Brasil tem 213.371 pessoas em situação de rua. De acordo com um estudo conduzido pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (POLOS-UFMG), com base nos dados do CadÚnico, do Ministério da Cidadania, pelo menos 38.605 novas pessoas começaram a morar nas ruas desde o início da pandemia de Covid-19. 

Só no Estado de São Paulo são quase 86 mil pessoas vivendo nessas condições. E as intervenções realizadas nos espaços públicos com o objetivo de afastar esse grupo vão de cercas elétricas e arames farpados a luzes piscando em locais que poderiam ser usados como dormitório. “Às vezes, é um guarda controlando a entrada ou um parque com cancela e grade”, pontua Paula. 

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“A arquitetura hostil é resultado de uma elite que tenta se tornar cada vez mais desigual, produzindo muros. E quando a divisão não é física, é de controle e regras. Quando colocam placas proibindo os usuários de uma praça de deitar no gramado, por exemplo”, sintetiza. “O mobiliário urbano das cidades brasileiras – que deveria ser acolhedor – cria ambientes de rejeição”, aponta. 

Crédito: Tarcísio Gontijo Cunha
Crédito: Tarcísio Gontijo Cunha

Urbanismo de exclusão

Para Tarcísio, o caminho natural das intervenções de exclusão é coibir a presença não apenas de pessoas em situação de rua em locais públicos. O tal mecanismo é observado, por exemplo, em calçadas que não são acessíveis para idosos ou pessoas com deficiência física. Ele relembra, também, a história de uma mulher que tomou sol de biquíni em uma praça de Belo Horizonte e foi criticada pelo ato. 

“Quando qualquer quina vira uma ferramenta contra desabrigados, as cidades ficam com um aspecto de zona de guerra. Esse mecanismo tenta inibir indivíduos em situação de rua, mas ele inibe todas as pessoas”, comenta. “Quando você isola o morador de rua de uma região, ele vai para outro lugar. Simples. Isso não ataca a causa daquilo, que é a desigualdade.” 

A solução, em sua visão, passa por outro caminho: utilizar os espaços públicos para estimular a integração social. “Promover mais ações de uso do espaço público é uma forma de reorganizar e reunir a sociedade. Não é apenas uma questão de desenho urbano, que é, de fato, a ponta final desse processo. Trata-se de entender que a falta de afeto está desumanizando as pessoas”, alerta. 

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Homem fazendo a barba no espelho/ Crédito: Tarcísio Gontijo Cunha

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