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[OPINIÃO] Terras devolutas e o colapso da confiança fundiária: um problema que atravessa séculos

Ermiro Ferreira Neto é doutor em Direito Civil e presidente da Comissão de Direito Societário da OAB-BA

Por:Ermiro Ferreira Neto 09/12/2025 4 minutos de leitura
"Em vez de proteger o possuidor de boa-fé, o Estado busca invalidar registros e cancelar matrículas com base em uma presunção de domínio público"/ Crédito: RNL Fotografia/AdobeStock

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A controvérsia sobre as terras devolutas é um dos dilemas mais persistentes e complexos do Direito Imobiliário brasileiro. Embora a expressão remeta a um passado distante, à Lei de Terras de 1850 e ao regime das sesmarias, seus efeitos reverberam com força no presente, afetando diretamente a segurança jurídica de milhares de produtores rurais, comunidades tradicionais e o próprio agronegócio.

A ideia de terra devoluta — aquela que, por não estar sob domínio privado legítimo, retorna ao patrimônio público — parece simples à primeira vista. No entanto, sua aplicação prática é marcada por paradoxos. A Lei de Terras de 1850, ao tentar organizar o caos fundiário herdado do regime de sesmarias, criou um critério de exclusão: tudo o que não estivesse ocupado ou titulado à época seria considerado público. O problema é que, até hoje, o Estado não conseguiu realizar a discriminação efetiva dessas áreas.

O resultado é um cenário em que imóveis ocupados há gerações, muitas vezes com registros públicos e atividade produtiva consolidada, são questionados judicialmente por entes públicos que alegam ausência de “destaque do patrimônio público para o particular”. Em outras palavras, falta prova de que a terra deixou de ser pública, mesmo quando há evidências de ocupação legítima e de boa-fé.

Essa lógica inverte o princípio da segurança jurídica. Em vez de proteger o possuidor de boa-fé — que investiu, produziu e contribuiu para o desenvolvimento regional —, o Estado busca invalidar registros e cancelar matrículas com base em uma presunção de domínio público. Trata-se de uma espécie de estatização indireta, sem indenização, sem contraditório adequado e, muitas vezes, sem prova robusta.

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O impacto disso é devastador. Além de comprometer a confiança no sistema registral, afeta diretamente o crédito rural, a sustentabilidade das cadeias produtivas e a paz social em regiões já marcadas por conflitos fundiários. O caso do Pontal do Paranapanema é emblemático: milhares de imóveis registrados são considerados devolutos pelo Estado, gerando um impasse que se arrasta há décadas.

É preciso reconhecer que o Estado falhou em sua missão de organizar o território. A sucessão de leis sobre discriminação de terras, do Decreto-Lei nº 9.760/46 à Lei nº 6.383/76, revela uma tentativa contínua, porém ineficaz, de resolver o problema. A ausência de mapas, inventários e registros confiáveis demonstra que, mesmo com recursos e comissões técnicas, o Poder Público não conseguiu cumprir sua parte.

Essa omissão não pode ser usada como justificativa para punir o particular. Ao contrário, deveria servir de fundamento para políticas de regularização fundiária que reconheçam a ocupação legítima e promovam a paz social. A terra, afinal, é um bem econômico, social e cultural, e sua função deve ser compatibilizada com os princípios constitucionais da dignidade, da função social da propriedade e da segurança jurídica.

Diante desse cenário, a experiência recomenda diretrizes de boas práticas que merecem destaque. A primeira delas é o controle da legitimidade ativa. Não basta que qualquer ente público ou o Ministério Público alegue a condição de terra devoluta, é preciso demonstrar, com base em direito material, que há titularidade pública e interesse coletivo relevante. A atuação do INCRA, por exemplo, deve se limitar à sua competência, sem usurpar a autoridade dos estados sobre terras estaduais.

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Outra prática essencial é o exame rigoroso da prova. Alegações genéricas não podem justificar o cancelamento de registros ou a negativa de usucapião. É necessário laudo técnico, análise fundiária detalhada e respeito ao contraditório. Além disso, o Judiciário deve considerar a boa-fé dos ocupantes, a cadeia dominial dos imóveis e os efeitos sociais das decisões.

Também é comum que os processos judiciais sobre terras devolutas se tornem extremamente complexos, tanto pela quantidade de partes envolvidas quanto pela sofisticação das questões jurídicas. Muitas vezes, imóveis originalmente titulados são desmembrados e alienados, gerando dezenas de litisconsortes passivos. A prova documental é escassa, exigindo análise de registros históricos, livros paroquiais e documentos antigos. A avaliação da boa-fé dos proprietários e da legitimidade dos títulos exige sensibilidade e conhecimento técnico.

Por fim, é preciso estimular soluções consensuais. A mediação entre entes públicos e particulares, com apoio técnico e jurídico, pode evitar litígios prolongados e promover regularizações que atendam ao interesse público e privado. O reconhecimento da ocupação legítima, quando presente, deve ser a regra, e não a exceção.

A disputa sobre terras devolutas é, em última instância, uma disputa sobre o modelo de país que queremos construir: um modelo que valorize a segurança jurídica, a produção sustentável e o respeito aos direitos adquiridos, ou um modelo que perpetue a insegurança, a judicialização e a desconfiança no Estado.

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Cabe ao Poder Público, ao Judiciário e à sociedade civil enfrentar esse desafio com coragem e inteligência, reconhecendo que a terra não é apenas um bem, é um território de vida, de história e de futuro.

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