“Biofilia” é um termo em português que une as palavras gregas “bios”, vida, e “philia”, amor. A biofilia é então o amor pela vida e, por extensão, o amor pela natureza. Na arquitetura, o conceito é aplicado no sentido de reconectar o homem ao espaço natural. Se antes o ser humano vivia em íntimo contato com o meio ambiente, agora, nas rotinas urbanas, chega a passar até 90% do tempo confinado em ambientes construídos. “Antigamente, nossa arquitetura usava átrios, jardins, lagos, fontes, motivos de plantas e animais e isso nos deixava próximos à natureza. Aproveitávamos a ventilação e a iluminação natural. Com a incorporação da eletricidade, há cerca de 140 anos, isso mudou. Passamos a vedar cada vez mais as nossas edificações e os espaços internos ficaram desconectados do exterior”, destaca Bia Rafaelli Casaccia, perita em design biofílico.
Arquiteta de formação, Bia estudou gestão empresarial no Brasil e foi para Nova York entender mais sobre o assunto a partir dos preceitos de Stephen R. Kellert. Trabalhou com Elizabeth Calabrese e retornou ao País como consultora de design biofílico aplicado à arquitetura e ao design de interiores. “Nosso mundo construído, esse nosso novo habitat, é muito recente na história da evolução. E o nosso corpo, a nossa mente, foram moldados para movimentos na natureza. Tendo em vista essa nossa conexão inata, instintiva com o meio ambiente, porque aceitamos estar em lugares que nos desconectam? E se isso pudesse ser diferente?” A profissional esteve este ano no Congresso de Arquitetura para a Felicidade, em Curitiba e, nesta entrevista, falou mais sobre o impacto das aplicações do design biofílico para a saúde humana.
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Por que você se interessou por esse tema?
Sempre busquei cultivar propósitos na vida. Procuro me alimentar saudavelmente, fazer exercícios, yoga, trabalhar minha espiritualidade. Mas minha vida profissional não estava alinhada com isso. Fiz cursos de construções sustentáveis que falavam sobre como usar os recursos, como aproveitar da melhor forma, e não falavam de como eu poderia levar saúde e bem-estar para os meus clientes por meio do meu trabalho, da arquitetura. Nessa época, trabalhei numa empresa de soluções verdes e entrei em contato com o design biofílico por meio de um artigo em inglês. Quando li, pensei: “nossa, é tudo o que eu sempre busquei”. Pesquisei bibliografias, fui atrás de referências na área e não achei nada no Brasil. As referências eram todas de fora, a maior parte norte-americana. Fiz alguns contatos até chegar à Elizabeth Calabrese, que lecionava a disciplina na universidade de Vermont, a única arquiteta que encontrei que dava aulas sobre o tema. Estive em contato com ela até que veio o convite para trabalhar no workshop de design biofílico em Nova York, na conferência CitiesAlive, em 2018. E ela vem para São Paulo no ano que vem, para um workshop em março, em São Paulo, que daremos juntas. Ela é minha mentora.
Como o conceito surgiu?
A definição de biofilia veio do Edward Osborne Wilson, biólogo americano que lançou um livro em 1984 com esse título: Biophilia. Foi ali que se difundiu o conceito. Depois, em 2005, Stephen R. Kellert falou sobre a aplicação na arquitetura, no livro Building for Life: Designing and Understanding the Human-Nature Connection.
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De que maneira a arquitetura pode incorporar os estudos sobre biofilia?
Podemos pensar no urbanismo biofílico, paisagismo biofílico. Hoje já existe a rede de cidades biofílicas. A biofilia pode ser observada em vários níveis: podemos olhar para o indivíduo, para o nosso lar, para a comunidade, o bairro, a cidade, a região e o planeta. Temos que pensar em utilizar os sistemas e processos naturais em toda essa rede. Por exemplo, não sermos tão dependentes do carro em relação à mobilidade, incentivar o uso de bicicletas e a circulação de pessoas a pé, utilizar as ruas, praticar atividade física e privilegiar a escala humana, estimulando a conexão social e a conscientização das pessoas em relação à importância do contato e do cuidado com a natureza.
O que é a rede de cidades biofílicas?
É um movimento criado pelo Tim Beatley. Existem diversas diretrizes e planejamentos necessários para que as cidades se tornem biofílicas: precisam ter uma quantidade de parques por região, telhados e paredes verdes, incentivos públicos, estruturas de lazer ao ar livre, favorecer a circulação de pessoas. São 20 cidades hoje que fazem parte, incluindo Texas (EUA), Cingapura (Malásia), Barcelona (Espanha), Edmonton (Canadá), Cidade do Panama (Panamá), Wellington (Nova Zelândia). Cada cidade tem um representante responsável por preencher a documentação necessária junto ao governo.
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Na Marginal Pinheiros, em São Paulo, temos uma linha de trem que liga Osasco ao Grajaú, na zona sul da capital paulista. O trem passa ao lado do rio, que tem um odor forte e desagradável. Seria uma aplicação da biofilia pensar além da despoluição das águas, mas também utilizar o canal como uma forma de transporte natural no ambiente urbano?
Isso é biofilia, sem dúvida. Utilizar sistemas e processos naturais para despoluir e conservar o rio. E depois, claro, utilizá-lo de alguma forma. O importante na biofilia não é só ter espaços verdes na cidade, mas favorecer a conexão com a natureza e planejar uma infraestrutura que atraia as pessoas para esses locais. Usar rios, riachos e canais para a locomoção e criar áreas de lazer em volta traz muitos benefícios para a população.
Qual cidade no mundo pode ser considerada um bom exemplo da utilização dos eventos naturais para servir ao ambiente urbano de forma inteligente?
Temos um exemplo no Canal Baima, que fica na China. Ele foi despoluído por meio de sistemas e processos naturais, como aeração e ecologias animais e vegetais. Depois, criaram um parque linear em volta, para que as pessoas possam usufruir. O rio San Antonio, no Texas, é uma integração eficaz de sistemas e processos naturais. O controle de inundação melhora a qualidade de vida da população e a beira do rio é um destino para viajantes e residentes que têm lojas ou restaurantes ao longo do trajeto. Barcos turísticos navegam por ali. Outro exemplo maravilhoso de biofilia no paisagismo e urbanismo é o High Line, em Nova York. O parque foi criado em 2009 a partir de uma antiga linha de trem desativada. Uma área abandonada foi transformada em parque verde, com espaços de convivência e de descanso, proporcionando a conexão das pessoas com a natureza no meio urbano.
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Em grandes cidades já construídas, essa prática é mais complexa, já que não dá para colocar edificações abaixo e começar do zero. O que podemos fazer, além de plantar árvores?
Visitei um prédio em Nova York onde, na cobertura, tem uma fazenda urbana. Todos os edifícios poderiam proporcionar locais para a produção de alimentos, seja para os moradores daquele prédio, do condomínio ou mesmo da região. É preciso pensar na agricultura urbana em áreas comunitárias, praças. Ensinar as pessoas a cultivar alimentos, tanto para a conscientização sobre como controlar a natureza quanto pela noção a respeito do preparo e da alimentação natural. Em comunidades carentes isso traz muitos benefícios. Existem estudos mencionando a redução da agressividade, além do aumento do convívio social, da interação. Para termos cidades biofílicas, temos que proporcionar o contato sustentável com a natureza, mas também promover o cuidado desses locais e o desenvolvimento social. Edward Wilson dizia que a gente cuida daquilo que a gente ama.
E no design de interiores? Quando pensamos em ambientes que valorizam o contato com a natureza dentro de casa ou no escritório, colocamos uma plantinha no canto da sala. Mas não é só isso.
Exatamente. O meu trabalho é esse também: difundir ideias para que as pessoas entendam que não é apenas trazer a vegetação para o ambiente construído, como a urban jungle ou conceitos assim. A biofilia vai além disso. Estamos falando de trazer toda a experiência da natureza, como a luz natural, que é essencial para a vida. A luz sincroniza o nosso ritmo circadiano. Sem luz natural o nosso ciclo biológico não funciona corretamente. Temos dependência da luz natural tanto quanto precisamos de imersão na escuridão total à noite, sem nenhum tipo de luz, nem celular ou computador, porque isso afeta o funcionamento do nosso organismo. A liberação da melatonina, que regula nosso sono, a liberação de outros hormônios, como o cortisol, que também é responsável pelo nosso estresse, pelo nosso humor. O ar puro é outro elemento. É essencial ter janelas manejáveis que possamos abrir e ventilar os ambientes e não só pensar no controle energético da edificação com ar processado, condicionado e ventiladores, com tudo artificial. As experiências diretas são as mais essenciais. Mas nem sempre podemos trazer a natureza como ela é. Nos hospitais, por exemplo. Estudos comprovam que se utilizamos imagens da natureza, como aquários em salas de espera, essa experiência é responsável por diminuir os níveis de ansiedade dos pacientes, traz relaxamento, acalma, reduz a pressão arterial e os pacientes se sentem melhor, mais confortáveis.
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Podemos considerar uma das aplicações possíveis da biofilia a observação de materiais? Em vez de utilizar elementos processados, como plásticos ou metais, usar madeira rústica?
Sim. Os materiais naturais, como a madeira, o bambu e as pedras são muito mais saudáveis se utilizarmos dessa forma, porque não soltam gases tóxicos e nos provocam respostas mais positivas, favorecem nossa ligação com o mundo natural, nos remetem à ancestralidade que foi nosso habitat durante milhares de anos.