[OPINIÃO] Como as bets estão ameaçando o sonho da casa própria
Anderson Morais é diretor comercial da BRZ Empreendimentos
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O Brasil vive um paradoxo. De um lado, o governo amplia esforços para facilitar o acesso ao crédito imobiliário, ajusta faixas, aumenta tetos e mobiliza fundos como poupança e FGTS para permitir que mais famílias conquistem a casa própria. Do outro, abre uma nova porta de escoamento do orçamento das classes mais vulneráveis, em especial da faixa 2 do Minha Casa Minha Vida (MCMV), que começam a comprometer renda e estabilidade financeira com apostas esportivas, como se fossem investimentos.
Uma consequência ainda pouco visível está onde menos se espera: um score negativo de crédito na hora de buscar um financiamento imobiliário.
O que deveria ser apenas uma nova forma de entretenimento se transformou em uma distorção de comportamento financeiro. No primeiro semestre de 2025, os jogos online movimentaram R$ 17,4 bilhões em gastos diretos pelos apostadores. A média por usuário ativo chegou a R$ 983 no período, o equivalente a cerca de 10% do salário mínimo atual de R$ 1.518.
Entre janeiro e julho, a arrecadação da Receita Federal deixou claro o tamanho da mudança: foram recolhidos R$ 4,73 bilhões em tributos sobre jogos. Desse total, R$ 2,6 bilhões vieram de apostas esportivas, superando os R$ 2,1 bilhões das loterias tradicionais.
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Com o avanço das bets e o aumento do comprometimento de renda das famílias, a Caixa já começou a utilizar o comportamento financeiro relacionado a apostas como critério no processo de concessão de crédito habitacional do MCMV.
Como tem acesso à movimentação das contas bancárias dos solicitantes, ela consegue identificar perfis que realizam pagamentos frequentes a plataformas de apostas. Esse comportamento recorrente sinaliza risco de endividamento.
Pesquisa do Instituto DataSenado identificou que 58% das pessoas que fizeram apostas por meio de aplicativos ou sites na internet estavam com dívidas em atraso há mais de 90 dias, e a maior parte dos apostadores (52%) recebe até́ dois salários-mínimos por mês.
Ao comprometer renda em um financiamento que dura décadas, o banco precisa ter segurança de que a família terá um mínimo de estabilidade financeira ao longo desse tempo. A prática contínua de apostas está levando à recusa de propostas e afetando diretamente o acesso de famílias de baixa renda ao Minha Casa Minha Vida.
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Não se trata de moralismo, mas de observar, com seriedade, a extensão dos impactos dessa mudança de comportamento que se disseminou no país. A confusão entre aposta e investimento cresceu tanto que já preocupa entidades do mercado de capitais, como a Anbima. Há alguns anos, iniciativas de educação financeira alertavam para o problema, mas a percepção pública não acompanhou o ritmo do crescimento do setor das bets.
Agora, as consequências aparecem de forma concreta: famílias perdem a chance de financiar um imóvel porque parte da renda está sendo drenada por um hábito que se tornou frequente, socialmente validado por influenciadores famosos e difícil de controlar.
O crédito imobiliário sempre foi um instrumento de transformação social. A casa própria representa segurança para milhões de brasileiros, sendo a principal construção de estabilidade e patrimônio familiar. Quando esse objetivo começa a ser comprometido por escolhas financeiras equivocadas, é necessário abrir o debate com responsabilidade. Não se trata de proibir apostas ou estigmatizar quem joga, mas de esclarecer que a linha que separa entretenimento e comprometimento excessivo da renda é muito tênue.
Déficit habitacional, vulnerabilidade financeira e falta de planejamento caminham juntos e atingem especialmente a base da pirâmide socioeconômica. Ignorar o impacto das bets nesse contexto seria fechar os olhos para um problema que já está documentado pelo governo federal, pelos bancos e por diferentes agentes do mercado.
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Precisamos estimular decisões conscientes e sustentáveis, para que as famílias não troquem o sonho do imóvel próprio por uma falsa expectativa de lucro rápido. O esforço público para facilitar o acesso à moradia é enorme. O esforço individual para manter a saúde financeira precisa acompanhar.
O debate sobre apostas esportivas costuma se concentrar em regulamentação, impostos e mercado, mas deveria incluir o futuro das famílias de baixa renda. A verdadeira escolha não é entre perder ou ganhar uma aposta, mas entre acumular de forma saudável recursos para conquistar um lar ou afastar-se desse objetivo sem perceber. O desfecho pode ser o indeferimento de um financiamento que poderia mudar uma vida inteira.
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