Prestes a ser inaugurado, o novo maior prédio de São Paulo, o Edifício Platina 220, na zona leste, é uma das marcas, segundo urbanistas, de nova fase da verticalização no Tatuapé, com foco no multiuso – empreendimentos que mesclam unidades residenciais, comerciais e corporativas. Os especialistas temem, no entanto, êxodo da população mais pobre com a valorização imobiliária, além do risco de apagamento da memória da região. Entre os moradores da área, a edificação desperta admiração e esperança de protagonismo, mas também o medo de preços altos e trânsito travado.
A incorporada Porte Engenharia e Urbanismo, responsável pela edificação, destaca que quer impedir o “êxodo” que já ocorre diariamente na região – da zona leste rumo a bairros mais centrais, ao trazer empreendimentos de multiuso. A empresa afirma que projetos passaram por avaliação “criteriosa”, que incluiu pesquisa com moradores e trabalhadores locais.
“O que a Porte tenta fazer com a implantação do Eixo Platina e estruturação da zona leste, mais pontualmente no Tatuapé, é tentar melhorar a lógica urbana, justamente para otimizar o trânsito que já é o vilão na cidade como um todo”, afirma Moniza Camilo, coordenadora de Ciência Urbana da incorporadora.
Frente à imponente construção, não é incomum se deparar com quem puxe o celular para fazer um registro. Francisca Moreira, de 70 anos, conta que já garantiu o dela. “Maravilhoso”, descreve o novo prédio. Já a vendedora Andressa Rodrigues, de 22 anos, nascida e criada no Tatuapé, prevê que a torre vai virar ponto turístico.
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Roberto Sérgio Lopes, de 64 anos, tem uma loja de artesanato há 15 anos em uma rua próxima. Por um lado, espera um aumento do fluxo de clientes, por outro já se preocupa com congestionamentos. “É uma rua pequena, de mão dupla. Não é uma avenida.” O prestador de serviços Claudinei Francisco, que trabalha na região, avalia que o custo de vida vai crescer ainda mais. “Quase não frequento ali para baixo, porque é um ambiente muito caro”, diz ele, de 45 anos.
“São Paulo tem uma demanda habitacional muito grande. Aquele padrão de crescimento horizontal hoje é totalmente inviável, porque a cidade alcançou seus limites ambientais”, explica Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), que foi relator do Plano Diretor da cidade, em 2014.
Essa legislação, explica ele, incentiva adensar as zonas de estruturação e transformação urbana – sistema de transporte público coletivo – com edificações de multiuso. “A política de adaptação da cidade frente às mudanças climáticas requer cidades mais compactas, menos espalhadas.”
A arquiteta e urbanista Cirlene Mendes da Silva, do Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia de São Paulo (Ibape), acredita que o Eixo Platina – projeto do qual o Edifício Platina faz parte – pode trazer “vitalidade” para a região, atraindo público, empreendedores e investidores. A construção desse polo urbanístico foi objeto de estudo da dissertação de mestrado de Cirlene.
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Também arquiteto e urbanista, Lucas Chiconi considera o fato de prédio mais alto estar na zona leste como “simbólico”, mas vê a valorização imobiliária como um risco. Ele também teme um apagamento da memória da região, criticando a demolição da Vila Operária João Migliari, em 2019, para erguer um dos empreendimentos do eixo. Segundo ele, a saída de moradores da vila e a venda de um projeto que não é para todos exigem reflexão. “Não é uma questão de não fazer, mas como fazer”, argumenta.
Moniza, da Porte, informa que o eixo ainda está na 1ª fase e uma 2ª já está sendo pensada. Para essa outra etapa, adianta, edifícios populares têm sido cogitados. A incorporadora aponta ainda que a demolição foi “legal” e que algumas casas já estavam “impróprias” para se viver.
A Prefeitura diz que “não incidia legislação preservacionista” sobre a Vila João Migliari quando da demolição, que foi deliberada só posteriormente. “Após a publicação da resolução de abertura de processo de tombamento dos conjuntos residenciais Migliari, foi solicitada a revogação de alvarás de demolição, em consonância com orientações jurídicas e legislação vigente, garantindo a permanência dos remanescentes” da vila e de outros conjuntos, destaca a Secretaria Municipal da Cultura.
“O processo de verticalização de São Paulo é um processo muito antigo e relativamente intenso”, fala Nabil. O que acontece agora, avalia, “não é nada tão diferente” de décadas passadas. A verticalização da capital remete às primeiras décadas do século 20, com construções como os edifícios Sampaio Moreira e o Martinelli. Conforme a industrialização avançava e São Paulo crescia economicamente, ela ganhava fôlego.
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Se, em um primeiro momento esteve concentrada no centro antigo, nos anos 1970, com a mudança na lei de zoneamento – que permitiu verticalizar fora da área central – avançou para outras regiões. Jardins, Itaim Bibi, Perdizes, Moema… e a própria zona leste, com Tatuapé.
No entanto, nesse momento, essas regiões do centro expandido e quadrante sudoeste verticalizaram mais rápido.
Ao mesmo tempo que algumas regiões com mais infraestrutura cresceram verticalmente, outras, com menos, expandiam horizontalmente, lembra o professor da USP. “Para acomodar uma enorme população migrante que chega na cidade e ocupa principalmente o loteamento periférico sem infraestrutura. Essa população trabalha nessas regiões mais privilegiadas e também nos polos industriais, que vão estar inicialmente perto das ferrovias e, depois, das rodovias.”
Lucas Chiconi destaca que a verticalização no passado foi de alto padrão e bastante intensa nos anos 1990. “Quando chega nos anos 2000, percebemos que a população – não só daqui do Tatuapé, mas como de bairros equivalentes do centro expandido -, conforme se verticalizaram, perderam população. Não é questão numérica, mas sim de quem saiu: a população mais pobre.”
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Cirlene conta que até a década de 1930, mesmo com a industrialização que já era “tônica” em vários bairros, o Tatuapé “se mantinha agrícola”. A grande extensão de terras e os baixos preços atraíram empresários.
Nos anos 1970, explica, por vários fatores – econômicos, fiscais, logísticos e ambientais -, “grande parte das indústrias saiu do Tatuapé, ficando suas áreas, além das chácaras remanescentes, disponíveis para a incorporação imobiliária, passando, dessa forma, de bairro agrícola e operário, para residencial e terciário” – bem mais fácil para incorporadores do que comprar propriedades menores para verticalizar.
O avanço do metrô na década de 1980 pela região também teve papel importante. Principalmente, agora, quando o bairro passa por novo momento de verticalização, desta vez multiuso, não residencial. O Plano Diretor de 2014 e a Lei de Uso e Ocupação do Solo de 2016 incentivam prédios comerciais e de uso misto nessas zonas de estruturação urbana – próximas ao transporte coletivo e público.
Bonduki explica que, se queremos que a população use transporte coletivo, o adensamento de áreas como essa no Tatuapé, é essencial. No entanto, ele aponta que é preciso planejamento para que não seja só de edifícios de renda alta. “Uma cidade mais saudável e sustentável, socialmente mais justa, deve prever maior mistura de classes sociais.”
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Este texto foi publicado anteriormente em:
https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,platina-220