Quando o então prefeito de São Paulo Antonio da Silva Prado cortou a fita inaugural da Avenida da Água Branca, em março de 1899, o objetivo era claro: conectar o progresso do centro da cidade à região suburbana, ainda com forte aspecto rural e em processo de desenvolvimento após a chegada das ferrovias São Paulo Railway e Sorocabana, respectivamente em 1867 e 1875.
O evento foi determinante para o rápido e intenso crescimento daquele pedaço da zona oeste paulistana. A via, hoje uma das mais conhecidas da cidade e rebatizada de Francisco Matarazzo, impulsionou a integração das ferrovias ao polo econômico e financeiro, recebeu grandes indústrias e colaborou na construção da cultura dos bairros Água Branca, Lapa, Pompeia e Perdizes.
A família de Clodoaldo Coelho Silva, empresário aposentado de 82 anos, viu tudo isso acontecer. “Meus avós já eram tradicionais da Lapa, estamos aqui há mais de 150 anos”, orgulha-se. “Sempre foi um bairro com clima espetacular. As famílias se conheciam, todos se davam bem e até fazíamos macarronada e frango com polenta coletivos aos domingos.”
Os finais de semana com costumes italianos não eram incomuns, já que a região recebeu muitos imigrantes. Um deles foi o próprio Francisco Matarazzo, que chegou como agricultor e se tornou um megaempresário. Das indústrias Matarazzo, na Avenida Matarazzo, surgiu um dos cartões-postais do oeste paulistano.
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A Casa das Caldeiras é uma fábrica da década de 1920, restaurada em 1999. Seu prédio, com chaminés de 30 metros de altura, foi tombado como patrimônio histórico da cidade, em 1986, e, atualmente, recebe eventos fechados, além de abrir as portas para festas e exposições mensais de seus artistas residentes.
A construção quase centenária contrasta com a modernidade do outro lado da via. Na mesma altura, o que se vê é o Allianz Parque, arena multiuso que, além dos jogos do Palmeiras, recebe também shows que vão desde o ex-beatle Paul McCartney até os jovens coreanos do BTS. Bem próximos ficam os shoppings Bourbon e West Plaza. Cada um deles abriga mais de 200 lojas, mercado, cinema e teatro.
Esporte, arte e bem-estar se misturam. Foi esse caldeirão de cultura que atraiu Beto Andretta, 57 anos, para um sobrado na Rua Sepetiba, Vila Romana, há uma década e meia. “Um conhecido vivia por aqui e me indicou a casa. Descobri o bairro, me identifiquei e nunca mais quis sair”, conta. “É efervescente do ponto de vista cultural, se faz tudo a pé e os vizinhos se conhecem. Parece a Vila Madalena dos anos 80.”
Beto não mudou sozinho. Ele trouxe consigo a trupe que o acompanha há 35 anos: os bonecos da companhia Pia Fraus, que, em latim, quer dizer algo como “uma mentira contada com boas intenções” ou “que serve para divertir”.
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Em 2018, já no atual endereço, na Rua Coriolano, em Perdizes, Beto decidiu abrir o acervo para visitação. “Hoje, temos essa integração com a comunidade. Temos programação de férias com repertório infantil e as pessoas vêm bastante”, relata. Em janeiro, o acervo será reforçado com peças do projeto Brinquedo Vivo.
Alta concentração de aparelhos de lazer, cultura e meio ambiente combina proximidade do centro e mobilidade
Não é à toa que, no ranking paulistano do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), os distritos de Perdizes e Lapa figurem nas primeiras posições: eles têm, respectivamente, pontuação de 0,957 e 0,941, valores equivalentes aos de países ricos, como Austrália (0,939) e Suíça (0,944).
Aliada aos shopping centers, à Casa das Caldeiras e ao Espaço Pia Fraus, a região se mostra bem servida de equipamentos culturais. O mais proeminente deles é o Sesc Pompeia. Instalado em uma antiga fábrica de tambores, foi reprojetado pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi e mantém programação ampla e variada, com atividades infantis, teatro, espetáculos musicais e exposições artísticas – atualmente, está aberta a mostra com obras do artista plástico Cildo Meireles.
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A menos de 2 quilômetros do Sesc está localizado o maior espaço verde da região. O Parque da Água Branca tem área de quase 137 mil metros quadrados (sendo 79 mil m2 de área verde) e se tornou ponto de passeios familiares, de feirinhas de artesanato e de gastronomia. Às terças, sábados e domingos, o parque lota de vez: são os dias da famosa Feira de Alimentos Orgânicos, que também oferece café da manhã com produtos fresquinhos, das 7h às 12h.
“Escolhi viver no bairro [Perdizes] há 12 anos, porque era próximo a meu local de trabalho na época. Sigo aqui porque me oferece qualidade de vida”, explica Eduardo Merli, jornalista e empresário de 41 anos, que é casado e tem um filho de 7 anos, Guilherme. “É bom para famílias por ter escolas muito boas e três áreas verdes próximas: o Parque da Água Branca, o Jardim das Perdizes e o Parque da Sabesp”, conclui.
Eduardo e Guilherme aproveitam bem as pistas de cooper e ciclovias para ouvir o som dos pássaros que habitam os parques públicos – somente no Parque da Sabesp, nome popular da Praça São Domingos Sávio, existe uma área de 14 mil m2 com flora remanescente da Mata Atlântica e árvores centenárias. “Também vou com meu filho, quase todos os sábados, à Biblioteca Pública Mario Schemberg: há um acervo incrível de livros infantis e de ciências”, complementa Eduardo.
“Outro ponto positivo é ser arborizado, com muitas espécies brasileiras. Tem de tudo: ipês, tipuanas, pau-ferro. Eu e meu filho adoramos caminhar, observar as árvores do bairro e ouvir muitos pássaros cantando pela manhã.”
Eduardo MerliPublicidade
Os moradores destacam a localização privilegiada do conjunto de bairros. Está perto do centro, da Av. Paulista, do bairro de Pinheiros e de importantes universidades, como USP e PUC, e ainda apresenta o menor índice de congestionamento da zona oeste, segundo dados do Índice de Tempo de Viagem (2018), realizado pela 99.
Os serviços públicos de mobilidade também servem à região. Na Lapa, são duas estações da CPTM que acessam as linhas 7-Rubi e 8-Diamante e um terminal de ônibus com 37 linhas, que transitam entre os 10 quilômetros de corredores reservados e os 12 quilômetros de faixas exclusivas.
Para Eduardo, Guilherme e quem mais gosta de passear de bike, são cerca de 5 quilômetros de ciclovias. Já a ciclorrota da Lapa tem, ao todo, 18 quilômetros, e vai até o Parque Villa Lobos, no Alto de Pinheiros. Mas falta algo. “Esse metrô, o bairro todinho de Perdizes aguarda com muita ansiedade. Os terrenos aparecem desapropriados em diversos pontos, mas não se veem as obras avançarem”, conta Merli.
As obras da Linha 6-Laranja do metrô se arrastam há mais de dez anos e, em agosto de 2019, o governo do estado de São Paulo prorrogou o processo de caducidade com o consórcio Move São Paulo: o atual prazo de entrega é 2021. Serão 15 estações, da Brasilândia até a São Joaquim (integração com Linha 1-Azul), passando pela Higienópolis-Mackenzie (integração com Linha 4-Amarela), e paradas em Perdizes, Pompeia e Água Branca.
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Linha férrea, industrialização, imigração italiana e urbanização de rio marcaram a história dos bairros
Quando a família de seu Clodoaldo chegou à Lapa, a região era uma zona rural. Um século e meio atrás, pouco havia mudado desde que os jesuítas receberam a sesmaria à margem do Emboaçava, atual Rio Pinheiros, em 1581. Um documento do “sítio de Emboaçava”, de 1765, registrava a presença de somente 31 habitantes por lá – em tupi, “Emboaçava” significa “lugar por onde se passa”, e o termo nomeou a localidade por pelo menos 300 anos (leia mais no quadro ao lado).
Foram as ferrovias São Paulo Railway e Sorocabana (respectivamente em 1867 e 1875) que mudaram completamente a paisagem. “Esses bairros têm três grandes fases de urbanização, sendo a primeira vinculada à via férrea”, explica Renato Cymbalista, urbanista professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). “A partir da instalação das estações, as linhas funcionaram como transporte para deslocamento urbano.”
Esse movimento aumentou a densidade populacional no entorno das estações e atraiu o olhar de empresários interessados no novo sistema de infraestrutura. Os amplos terrenos, então dedicados à agricultura, tornaram-se sede de grandes indústrias, cuja produção seria facilmente escoada pelos trens. “Apareceram dois tipos de ocupação industrial. Uma com as fábricas e outra com os operários”, complementa Cymbalista.
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A industrialização se acelerou nas décadas de 20 e 30 e intensificou o fluxo de imigrantes: espanhóis, húngaros e principalmente italianos fixaram residência no entorno das fábricas. As grandes empresas, então, estruturaram os bairros com dois perfis distintos de urbanização: Lapa e Água Branca com viés mais operário e Pompeia e Perdizes para a classe média alta. O terceiro movimento se baseou nas obras realizadas no Rio Tietê. “Era um curso muito sinuoso e, com sua retificação, muitos pedaços de terra se tornaram terrenos urbanizáveis”, conclui o professor.
Entre 2016 e 2018, os bairros da Lapa, Pompeia e Perdizes receberam, respectivamente, 1.743, 1.200 e 536 novas unidades de lançamentos residenciais, com metro quadrado vendido, em média, por mais de R$ 11 mil. Trata-se de um novo movimento de ocupação.
Para Reinaldo Fincatti, diretor da Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio (Embraesp), Perdizes e Pompeia, embora já bastante verticalizados, ainda atraem interesse de incorporadoras e compradores de imóveis, sobretudo pela qualidade de vida que garantem aos moradores. Já a Lapa e Água Branca estão em um processo novo.
“Ainda são áreas muito industriais, mas estão passando por uma renovação do tecido urbano”, afirma. “A Operação Urbana Água Branca [Lei de 1995 que regula a ocupação da região] prejudicou seu desenvolvimento imobiliário. O PL 397/2018 [que revê essas regras], se aprovado, deve trazer mais empreendimentos residenciais e comerciais”, prevê.
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