Morar Com The New York Times

Amor e imóveis

Para duas pessoas de personalidade forte acostumadas a tomar suas próprias decisões – cada uma com uma vida inteira na bagagem – compartilhar 74 metros quadrados é um desafio

Por: Jan Benzel, do The New York Times 13/01/2020 7 minutos de leitura
Crédito: Yvetta Fedorova

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“Você tem certeza que quer que eu vá morar com você?”, perguntei.

Aonde mais você deveria morar?”, ele respondeu.

Ah, amor e imóveis. Em Nova York, eles estão sempre entrelaçados. Eu gaguejei antes de reconhecer a resposta dele como um sinal inequívoco de compromisso. Meu novo amor – o nome dele é Bruce – tinha 60 anos então.

Ele levava uma vida de solteiro em um loft localizado no Greenwich Village há anos. Comprou o apartamento quando os preços de Nova York ainda estavam ao alcance de um jovem que vivia frugalmente, tinha um emprego estável – naqueles dias, existiam empregos estáveis – e um salário decente.

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Quando ficou claro que estávamos juntos, as pessoas se apressaram a opinar: vocês vão procurar um novo lugar juntos, não vão? Fazer um novo começo? Mas a vida já estava bastante complicada, então mandei a maior parte das minhas coisas para uma unidade de armazenamento e apareci na porta do Bruce com duas malas apenas. Amigos não entendiam como eu poderia me mudar para um apartamento de um quarto, definitivamente um lugar para alguém solteiro. Além disso, tinha um pouco de decoração temática de beisebol. “E o pôster gigante da Lolita?”

Eu poderia muito bem ter mantido uma casa sozinha em outro lugar. Estive cuidando de mim mesma e de outras pessoas – filhas, agora crescidas; um marido, agora ex; gatos; um cachorro; um aquário com peixes tropicais – por um bom tempo. Já Bruce viveu mais ou menos sozinho nessas décadas. A última vez que ele compartilhou espaço de maneira significativa foi no começo dos anos 80, quando morou num imóvel alugado no Upper West Side junto com um colega de faculdade, o Rick. Eles raramente tinham algo além de um pote de manteiga de amendoim na geladeira. E cerveja, para se entreterem. E assim coabitaram felizes por meia dúzia de anos.

Agora, o imóvel de Bruce no Village, no 11º andar de um prédio que fora uma fábrica de tijolos e ferro fundido na virada do século passado, era o lar de um adulto que sabia do que gostava. Bruce foi moldando o espaço ao longo do tempo. Houve o período de solteiro clássico, com sofá de couro preto cromado lustroso. Daí veio a fase do escritor que trabalha em casa, durante a qual a paleta de cores começou a esquentar, com uns vermelhos e azuis e um tapete persa com motivos alegres.

As estantes, que iam do chão ao teto, cobriam duas paredes inteiras, com volumes no topo acessíveis por meio de uma escada com rodinhas. Duas televisões enormes (uma no quarto e uma na sala de estar) significavam que qualquer jogo de bola estava a apenas um botão de distância. Um arquiteto inventivo abriu a sombria cozinha da galeria e pegou emprestado o espaço de um quarto para criar um banheiro com azulejos de vidro, espaçoso o suficiente para manter os cotovelos debaixo do chuveiro e com uma iluminação que parece uma claraboia. Também tinha um armário especial para guardar uma bicicleta usada com frequência.

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Todo o local era adaptado, assim como a bicicleta, para um homem alto, com prateleiras para cima, bancadas um pouco mais altas do que o normal, reforço para as enormes janelas que davam para as caixas d’água e para o brilhante telhado industrial prateado. Eu me sentia como a Polegarzinha em minhas primeiras visitas lá. Precisava ficar na ponta dos pés para me ver no espelho do banheiro e subir em um banquinho para pegar um prato de um armário. Mas nem a altura e nem a decoração de beisebol, no entanto, eram um problema real para os meus amigos opinativos que achavam que deveríamos nos mudar para outro lugar. O que eles se perguntavam, e admito que eu também o fiz, era: como eu poderia morar em um apartamento com os fantasmas da grande vida que aconteceu antes de mim?

A história precisa ser contada

Bruce e eu nos conhecíamos há mais de 30 anos. Eu já tinha visto esse apartamento anteriormente, e os apartamentos anteriores a esse também. Ele conhecia minhas filhas e o pai delas. Eu conheci vários casos e também algumas namoradas do Bruce, bem como seus pais, com quem estive brevemente. Casamento, filhos ou nenhum dos dois – não tem como ter a idade que temos sem trazer muita bagagem. Depois de todos esses anos de amizade, cada um de nós tinha uma ideia bastante clara do que o outro estava carregando.

Claro, às vezes eu pensava no passado do Bruce, até aprender a fechar com firmeza essa porta na minha cabeça. Ah, e a propósito, eu também me perguntava: por que ele iria querer assumir eu e meu passado? Não importa aonde você more com alguém, você vive o contexto não apenas com essa pessoa, mas também com as facetas e espectros das pessoas que estiveram ali antes de você. Quando se chega aos 60 anos, o histórico de emoções – anseios, esperança, amor, decepção, tristeza, solidão e satisfação – faz parte do acordo. Na verdade, como é possível querer menos do que isso?

Mais precisamente, duas pessoas de personalidade forte, acostumadas a seguir seu próprio caminho, tiveram que descobrir como compartilhar 74 metros quadrados. Quando desempacotamos meus livros, Bruce começou a organizá-los de acordo com as categorias: ficção, capa dura, ordem alfabética, biografia, teatro, brochura, capa mole, história do beisebol. Momentaneamente atordoado com meus tantos livros de receita, ele encontrou espaço vazio na prateleira debaixo. Entrei em pânico e dei chilique incapaz de explicar exatamente porque eu precisava que esses livros ficassem amontoados, ainda que dentro de uma caixa.

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Compartilhar espaço pode ser a parte mais complicada de um romance tardio, ou de qualquer romance em que se venha a cogitar isso. Mais de um casal que conheço decidiu evitar essa fadiga, mantendo seus próprios imóveis e se visitando aos finais de semana ou algumas noites por semana. Outros aceitaram morar juntos, mas mantiveram seus apartamentos antigos, usando-os como estúdios ou escritórios – ou possíveis saídas de emergência. Seja lá quais tenham sido as escolhas, parecem estar funcionando também. Afinal, quem realmente quer compartilhar um armário de remédios da meia-idade?

Eventualmente, as fotos da minha família se misturaram às do Bruce. De alguma forma abrimos espaço para um grande armário de fazenda que guardava a louça de minhas avós. A cozinha se tornou meu domínio (sim, sou mandona na cozinha) e sentamos à mesa para comer – uma ideia nova para ele. “Jantar em casa!”, ele exclama com uma costeleta de cordeiro e uma batata assada. “Como é que ninguém nunca pensou nisso antes?”

Nesses 74 metros quadrados, cada um de nós aprendeu o que era importante para o outro. Havia uma história por trás de tudo o que Bruce tinha no apartamento. Aprendi que ele cuidadosamente guardava lembranças de seus pais. A mesa de café com tampo de vidro de forma estranha também esteve na casa deles; a bela pintura de uma cena da calçada de Paris era um presente de seu pai para sua mãe; as fotografias penduradas acima da mesa haviam sido feitas por Bruce durante uma memorável viagem de bicicleta pelo Vietnã.

Nós resolvemos a situação sobre a estante de livros com a qual passei a conviver. Encontramos espaço em outro lugar para a bicicleta e expandimos o armário do quarto. Decoramos a casa para o Natal com uma árvore pequena e outra menor. Alimentamos muitos amigos e familiares na nossa mesa. E em algum lugar ao longo desse caminho, a gente se casou.

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A certa altura, reconhecemos que tínhamos passado muito da média de idade da vizinhança, agora cheia de estudantes e turistas europeus incrivelmente modernos. Os marcos dos anos da nossa geração em Greenwich Village – a Bottom Line, a Tower Records, o Lone Star Cafe, a Noho Star e a facada final, o supermercado na nossa esquina, desapareceram. Tínhamos deixado nossos empregos no escritório e não havia espaço suficiente para nós dois trabalharmos em casa. Adotamos um gatinho que ocupava muito espaço psíquico. Ansiamos por silêncio. Então começamos a pensar em nos mudar.

“Desfaçam-se das estantes de livros”, aconselhou um corretor de imóveis quando decidimos vender o local. “Ninguém mais tem livros. E aquela parede azul na cozinha? Pintem de branco.” Em outras palavras, apague os últimos 30 anos de vida, como chuva lavando giz da calçada. Nós não poderíamos fazer isso. Demorou vários meses, até que finalmente um jovem de 30 anos com um emprego decente decidiu que ali seria um bom lugar. Ele tem algumas ideias para reforma, mas é a favor das estantes e da escada de biblioteca.

Agora vamos para outro lugar, com espaço, luz e silêncio, se tivermos sorte. Mas onde quer que seja, haverá decoração de beisebol. E só pra constar: está tudo bem pra mim. / TRADUÇÃO DE ELENA MENDONÇA

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